O homem sem alma

em 12 de fevereiro de 2014

Um homem perdeu a alma certa vez. Seguiu seu caminho sentindo no peito um vazio estranho. As noites que passava em claro lhe faziam sentir o mundo cru e denso zunindo em seus ouvidos. Resolveu sair pelas ruas pronto para matar ou morrer. Queria se vingar. Queria descontar em qualquer um sua angústia, seu ódio e todas as mentiras nas quais acreditou. Pegou sua arma e colocou na cintura. Sentiu arder seu nariz e seu coração pulsou acelerado. Foi andando sem qualquer direção. Sem destino. Sem proposta. 



Queria apenas sentir o gosto de sangue entre seus lábios. Saiu em silêncio, mas com uma gritaria ensurdecedora em seus pensamentos ruins. O homem que um dia havia acreditado nas pessoas e que percebeu que foi enganado. Não era um homem Santo. Era um homem. Tinha alma, mas perdeu pelo caminho. Não acreditava em todos, mas dos poucos que acreditou, descobriu a verdade. Foi vagando e olhando nos olhos de cada um que passava por seu campo de visão. Encarando, escolhendo. Aleatoriamente quem seria o viés por onde ele descarregaria seu ódio. Passou por uma casa que parecia abandonada e um cachorro surgiu latindo o que assustou o homem que puxou a arma e apontou em direção ao animal. Pensou bem e concluiu que o animal valia mais que todos os seres humanos juntos. 


Talvez ele estivesse apenas defendendo o que é de seu dono, através da lealdade que lhe cabia como bicho. Respirou após o susto que tomou e quando retomou a caminhada viu um bar aberto. Rumou em direção ao local, verificou com calma todos os presentes, sentou-se no balcão e pediu uma dose de uísque puro. Virou de uma só vez. Não sabia onde havia deixado sua alma. Talvez em casa, talvez no hospital onde trabalhou, talvez pelos buracos onde se meteu, talvez entre as mulheres que amou, talvez entre o filho que tentou ser e o pai que não foi. Pediu mais uma dose para o garçom, pegou uma nota de 100 reais e deu em suas mãos, notou como eram calejadas. Aquele homem deveria ter uma vida um tanto quanto atribulada, difícil. Tentou ver em suas marcas de expressão o que já havia passado. 
Ele sabia que as feições de um homem contavam muito de sua história. Percebeu pelas rugas nas testas que e pelo semblante curvo da maçã do seu rosto que havia tristeza naquela história. Mas não quis puxar assunto. Ficou quieto, ouvindo seus pensamentos sujos. Ouvindo o diabo sussurrando em seu ouvido. Mandando girar, rodar, encontrar algo que o fizesse feliz. Eram chamas acesas com um tridente espetando a consciência. Ele se levantou, o servente foi dar o troco e ele recusou. - Fica para caixinha. - Obrigado senhor. Deus lhe abençoe. Ficou com a frase na cabeça. "Deus lhe abençoe". Pensou em todas as pessoas sofridas que acordam cedo e enfrentam um turbilhão de dificuldades, para conseguir sobreviver num país injusto, cheio de mazelas, de bandidos travestidos de bons moço e tentou encontrar a Bênção que Deus deu a estas pessoas. Ele não tinha raiva de Deus, apenas queria entender por que meandros agia o ser superior. Não estava muito claro para ele. Talvez a oportunidade de viver. A simplicidade de suas vidas complexas, violentas, difíceis, mas com algumas poucas alegrias no fim de semana. As reuniões de família, as poucas coisas que ainda serviam para lhes arrancar um sorriso. Isso era sem dúvida uma bênção. Cansou de refletir, ajustou a arma na cintura, se levantou do bar e voltou a andar pelas ruas sem direção. Avistou uma mulher parada na esquina, deveria ser uma prostituta. Ele tinha alguma compaixão pelas prostitutas. Se aproximou, puxou um cigarro, ofereceu a ela e acendeu um para sentir o gosto da nicotina, sua companheira diária de reflexão. A moça tinha uma beleza ajeitada. Com horas num salão de beleza talvez. Unhas cintilantes, um salto alto, vestido curto. Pronta para seduzir os navegantes do asfalto, que se perdem na madrugada a procura de sexo. Não falou nada, apenas ficou a observando. Ela por sua vez perguntou se ele gostaria de fazer um programa. E ele respondeu que não. E que também não iria atrapalhar. Que queria apenas olhar um pouco para ela, sem compromisso. O Homem não imaginou nenhuma cena de sexo sequer. Não deixou que seus comandos mentais o levassem para o campo da luxúria. Apenas ficou olhando e sentindo o cheiro de perfume barato que ela estava usando. O homem sem alma deixou seu passado vir a tona. Lembrou de seus filhos, de sua mulher. O que ela estaria fazendo agora? Com quem? Por que? E as crianças? Estariam sendo bem tratadas? corriam o risco de no futuro terem de recorrer a esse tipo de trabalho? Aquilo o deixava ainda mais nervoso. Se despediu da moça e foi andando. Ouvindo o barulho do caminhão de lixo, dos homens recolhendo o que não servia mais as pessoas e jogando tudo numa caçamba suja e fedorenta. Viu uma movimentação estranha numa outra esquina e deu mais ou menos 300 passos até chegar perto do murmurinho.


 Era um bar lotado de gente bêbada, ouvindo um som ruim, alto, no meio da madrugada. Se aproximou, puxou uma cadeira, sentou e ficou observando. Acompanhando a troca de olhares, as tentativas de sedução, o ar da falsa liberdade que permeava a mente daquelas pessoas. Foi até o banheiro e novamente sentiu seu nariz arder e o coração acelerar. Saiu de lá disposto a encontrar alguém com quem pudesse se indispor. Ninguém naquele lugar imaginava que um homem sem alma estava em busca de sua vítima para descarregar sua fúria contra o mundo. Ninguém nunca imagina isso. Ele andou esperando o primeiro filho da puta esbarrar nele. Mas ninguém esbarrava, parecia que havia uma barreira de proteção que impedia as pessoas de chegar mais perto. Voltou até seu acento. As horas se passaram. Um gato parou do lado dele. Ele acariciou o gato. Fumou mais alguns cigarros, bebeu mais algumas cervejas. Não flertou com nenhuma mulher. Ficou no aguardo do chamado para a matança. Ele queria matar alguém. Esfolar vivo. Fazer todas as maldades que só imaginou em seus piores dias. Mas ninguém aparentemente parecia servir ao seus impulsos. O dia amanheceu, o bar ficou vazio. Apenas ele e os garçons. Os homens trabalhando, e recolhendo a sujeira deixada por todos que passaram a noite lá. Ele observou aquele ritual, pegar as cadeiras, limpar as mesas, limpar o chão. E ouviu quando um homem foi informá-lo de que já estava na hora de fechar. lentamente se encaminhou até o homem, olhou em seus olhos, encarou com força aquele senhor que poderia ser seu pai. O mesmo que o espancou na infância. Que chegava Bêbado e batia em sua mãe. Chegou a colocar a mão na cintura, mas quando foi fazer o movimento, uma senhora o tocou pelo braço. - Senhor, pode me ajudar? Estou precisando comprar leite para minha filha, ela está há dois dias sem comer. Pode me dar um trocado? Da direção da arma, o homem sem alma, colocou a mão no bolso e então pegou todo dinheiro que tinha em sua carteira e deu para a mulher. Ela agradeceu com um beijo em sua mão e em seguida disse: - Muito obrigado senhor. Já está amanhecendo, volte para casa e não faça nenhuma bobagem. Ele deu um leve sorriso para a mulher. Voltou a encarar o senhor que o olhava com uma expressão cansada. Deu dois passos para trás, pegou a arma, apontou para a face do senhor, que se assustou e deu passos para trás. Todos os outros funcionários se jogaram no chão. O senhor começou a implorar pelo amor de Deus, queria saber o que havia feito para que aquilo estivesse acontecendo. Ele não deu uma palavra. Apertou o gatilho que disparou uma bala que viajou a centenas de km por hoje e acertou um vidro que estava atrás do velho homem, e espatifou tudo no chão. Todos que estavam apreensivos observando a cena, não entenderam absolutamente nada. O homem então recolocou a arma na cintura. Saiu calado pela porta... deixando para trás um rastro de pavor, sem perguntas nem respostas. Foi caminhando até um ponto de ônibus.

 O veículo lotado. Não conseguiu sentar. Foi embalado junto com toda aquela gente que estava indo para o trabalho. Num dado momento o ônibus deu uma freada e quase derrubou todo mundo. Alguns indivíduos entraram e mandaram todo mundo sair da lotação. Estavam de capuz, e com galões de gasolina nas mãos. As pessoas desciam gritando apavoradas. O homem deixou que todos passassem quase por cima dele. Não havia mais o que perder. Já havia perdido a alma. Os encapuzados ordenaram que todos se retirassem do veículo. Ele se negou. Os homens então jogaram gasolina e espalharam para todos os lados. 



Acenderam um fósforo e atearam fogo. Ele ficou lá parado. Vendo as chamas. Muito parecidas com as que ardiam há anos em seu olhos. Muito parecidas com as que atormentavam há anos seus pensamentos. Os bandidos ficaram perplexos com a cena. O ônibus em chama, as pessoas gritando e aquele homem lá parado pegando fogo. Sem nenhum movimento. 


Apenas parado e incendiado. Incendiado pela falta de amor, pela falta de esperança, pela falta de confiança nas pessoas, pela falta de compaixão. Ele já havia morrido faz tempo. Já havia deixado sua alma há muito. E agora não sentia nada. Apenas o alívio do fogo consumindo sua pele, seu corpo, seu coração. Morreu queimado. E todos queriam saber quem era aquele homem que escolheu ficar. Quando os bombeiros chegaram, não havia mais traços da existência desse homem por lá. Apenas o pó. E então recolheram tudo e não conseguiram identificar quem ele era. Não havia sobrado nada. Afinal, quando um homem perde sua alma pelo caminho. Nada mais importa. E assim se foi o homem sem alma.

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